O outono pintava de ocre e carmesim os jardins do antigo sanatório, agora convertido em residencial para seniores. O Dr. Eduardo Almeida, neurologista aposentado, observava a paisagem da varanda do seu quarto. O seu mundo, outrora palco de diagnósticos certeiros e intervenções precisas, reduzia-se agora àquele espaço e àquela vista. Um frio interior, um “cortisol” da alma, como ele próprio, irónico, definia, mantinha-o num estado perpétuo de luta surda contra a irrelevância. A sua mente, treinada para o cepticismo científico, via a vida como uma sucessão de reações bioquímicas, onde conceitos como “gratidão” lhe pareciam placebos para mentes fracas.
A sua rotina era solitária. Até que, numa tarde, um novo habitante chegou à residencial. Apresentou-se como António. Trazia consigo uma serenidade palpável, uma luz nos olhos que contrastava com a penumbra do lugar. António fora educado num mosteiro na sua juventude, e trazia consigo hábitos antigos.
Todas as noites, pontualmente às nove, António parava à porta do Dr. Almeida. Não impunha a sua presença, mas simplesmente ali ficava, com um sorriso tranquilo.
– Boa noite, Doutor – dizia ele, com uma voz que era uma carícia.
O Dr. Almeida limitava-se a anuir com a cabeça, num gesto seco. Mas António insistia, gentilmente.
– Hoje, o sol entrou pela minha janela e aqueceu o chão. Fui grato por esse momento de graça. E o Doutor, teve algum instante pelo qual se sinta agradecido?
Eduardo revirava os olhos. “Instantes de graça?”, pensava. “A única coisa pela qual poderia ser grato é que a minha artrose não doeu tanto hoje.” Mas a persistência serena de António começou a criar uma fenda na sua armadura. Ele lembrava-se do texto que lera sobre gratidão, daquelas ideias que considerara “pensamento positivo”. No entanto, algo no tom de António ecoava aquelas palavras: “a energia da gratidão dá saúde e amplia os nossos próprios horizontes”.
Uma semana depois, num dia particularmente cinzento, o Dr. Almeida, movido por um impulso que não conseguiu decifrar, murmurou em resposta:
– Bom, a sopa… a sopa estava quente. – Soou ridículo aos seus próprios ouvidos.
O rosto de António, porém, iluminou-se.
– Que belo motivo! O calor que nutre o corpo e a alma. Boa noite, Doutor. Durma em paz e grato.
Naquela noite, pela primeira vez em anos, Eduardo adormeceu sem a habitual ruminação de pensamentos negativos. A simples admissão de um pequeno conforto, por mais ínfimo que fosse, operara uma magia subtil. Era como se uma serotonina espiritual, daquelas de que falava Emmons, lhe tivesse sido ministrada.
Os dias transformaram-se. A prática do “Boa Noite” tornou-se um ritual. Eduardo começou a procurar, conscientemente, motivos de agradecimento: o canto de um pássaro, a memória remota de um caso médico bem-sucedido, a gentileza de uma enfermeira. A sua “antena” interior, até então sintonizada na frequência estática do desdém, começou a captar os “sinais electromagnéticos e espirituais” de beleza à sua volta. A sua perceção da realidade alterava-se, reescrevendo, como sugeria o texto, uma memória ancestral que sempre o inclinara para o pessimismo.
O clímax desta transformação deu-se numa manhã de Natal. O salão comum estava decorado, mas o ambiente era da melancólica obrigatoriedade. O Dr. Almeida, sentado num canto, observava os outros residentes, muitos deles mergulhados no seu isolamento. Então, viu António. Com a mesma serenidade de sempre, António aproximava-se de cada um, não para oferecer um presente material, mas para lhes sussurrar algo ao ouvido. Em cada pessoa que ouvia aquelas palavras, observava-se uma mudança: os ombros relaxavam, um sorriso tímido brotava, os olhos marejavam. A gratidão tornava-se presente como uma lua que ilumina o caminho na noite.
Intrigado, Eduardo esperou que António se aproximasse.
– O que estás a dizer-lhes? – perguntou, em voz baixa.
António fitou-o, e os seus olhos pareciam conter a luz de todas as estrelas da noite de Natal.
– Estou apenas a agradecer-lhes.
– Agradecer? O quê? Mal os conheces!
– Agradeço-lhes simplesmente por existirem. Por fazerem parte deste todo. Por estarem aqui e me permitirem partilhar este espaço e este momento com eles. É o meu exercício do “Dia da Boa Morte” (1): agradecer a vida que nos é dada, hoje, agora, intensamente.
António pousou a mão no ombro de Eduardo.
– E a si, Doutor, quero agradecer profundamente.
Eduardo ficou estupefacto. Surpreendido por ter sido agradecido. Ele, que se considerava um fardo, um homem amargo no outono da vida.
– A mim? Pelo quê, pelo amor de Deus?
António sorriu, num gesto de pura e simples fraternidade.
– Por me ter ouvido. Por ter aceitado o meu “Boa Noite”. Por ter permitido que eu praticasse a minha gratidão consigo. A gratidão, para ser completa, precisa de ser partilhada. Precisa de um outro para quem se direcionar. Você, ao aceitar o meu agradecimento, tornou-o real. Foi o recipiente que permitiu que a minha gratidão se manifestasse no mundo. Por isso, sinto-me em dívida consigo. Obrigare (2). Sinto-me ligado a si.
O Dr. Almeida não conseguiu conter as lágrimas. Compreendeu, naquele instante, a dimensão espiritual daquela virtude. Não era uma mera transação de favores; era uma força de ligação, uma ressonância do amor que unia as almas. Ele não era um mero recebedor, mas um elemento vital no circuito da graça. A gratidão de António não o colocava numa posição inferior, mas elevava-os a ambos, criando um laço de fraternização inexplicável.
Naquela noite, o Dr. Eduardo Almeida foi quem procurou António. Parou à sua porta, e com uma voz embargada, mas firme, disse:
– António, boa noite. Hoje… hoje sou grato por ti. Sou grato por teres surpreendido esta alma velha e céptica com o teu “obrigado”. Iluminaste a minha noite.
E, sob a luz prateada da lua, que como uma lâmpada divina clareava as sombras da dúvida, os dois homens trocaram um olhar. Não havia juízo, não havia análise, não havia bem nem mal. Havia apenas, tal como o texto previra, a calorosa, luminosa e amorosa ressonância energética que tudo inundava. Eram, finalmente, gratos e portanto, finalmente, felizes, por lhes ser dada a graça do reconhecimento de interdependência.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo
(1) Alusão ao hábito que tínhamos nos Salesianos de uma vez por mês fazermos o “Exercício da Boa Morte”. O “Dia da Boa Morte” refere-se ao “Exercício da Boa Morte”, uma prática espiritual mensal introduzida por São João Bosco para preparar a comunidade e cada um para o encontro com Deus no momento da morte. Isto incentivava a revisão da vida através do exame de consciência, a organização pessoal de modo a deixar o nosso interior e exterior em ordem.
(2) A palavra “obrigado” deriva do latim obligatus, particípio do verbo obligare, que significa “ligar”, “atar” ou “ficar preso por uma obrigação”. A palavra dirigida uma pessoa que é com que um comutador que liga, “estar ligado”
Gratidão além de virtude é um remédio eficaz: https://www.gentedeopiniao.com.br/opiniao/artigo/gratidao-alem-de-virtude-e-um-remedio-eficaz